Enlouquecimentos Cotidianos

Apagaram a luz.
Agora os monstros criaram asas [e vida] e passeiam livres ao meu redor.

Tateio em busca do abajour que não acende. Convivo.

Sei que não vão me machucar. Passeiam por aqui enquanto as gatas miam, incomodadas e prontas pra se defender. Todas a minha volta. “Eles” não nos farão mal.

Pernas, pés e braços entorpecidos, dormentes. Durmo, não bebo e rezo. São apenas medos…

Resta-me acender a luz e eles somem, escondem-se em algum canto escuro [que não sei] dentro de mim.

Ficarão lá, morrendo de inanição a cada sorriso, a cada amor, movimento, abraço.

Por um tempo, trocaremos de lugar. Eu passeio livre enquanto eles olham, até a próxima lua, tempestade ou escuridão.

Por hoje, convivo.

Qualquer coisa que se SINTA

“Il y a toujours quelque chose d´absent qui me tourment”*

Quero da vida todos os amores
Todas as intensidades
Todas as vontades satisfeitas.

Quero de mim mesma algo grande
Do outro, algo de belo
Instigante, insinuante
Inusitado
Intenso
Espelhado.

Quero. Tenho. Preciso. Pressinto.

Sinto?

Sei lá… Tantas vezes, esse muito que me consome vira um mar de nada, de lava, de algo que abandona. Me detona até a raiz dos pêlos, esfria a pele, congela o mundo, enfeia.

A vida é bela, as coisas lindas, pessoas cheias de algo… nem sempre bom. E tomo meus tapas na cara e cuspo os dentes fora, me despeço de mundos feios, tranco portas de caminhos que não me interessam. Digo adeus e no adeus me ganho de volta. Mesmo machucada, com outras marcas, um olhar ainda mais apurado e muito menos doçura para doar, sigo. Inteira.

Aprendi antes de nascer que o SER é coração e que ele SENTE. Confundi SER com qualquer “gente”, pessoa, humano. Me enganei. O SER SENTE, mas nem todo ser humano faz o mesmo. O mundo superlotou e nos habituamos a viver com “pontes”, “latrinas”, “brinquedos” humanos. Desrespeitamo-nos!! Mudamos o olhar, já não olhamos para o outro, para o nosso umbigo e mal fazemos amigos inteiros. Nos habituamos com meios, com poucos, migalhas de nada e nos desvirtuamos da integridade do sentimento, do tal AMOR inteiro, do sentimento real e profundo de SER e do olhar generoso para o outro.

Vamos crescendo, correndo para a vida, ansiando coisas, perdendo o fôlego, perdendo a nós mesmos, deixando de SER e nos acostumamos a apenas existir enquanto usamos coisas e pessoas, fingimos sentimentos ilusórios, vendidos no câmbio negro ou em qualquer esquina de carência, como droga alucinógena. Verdades estranhas foram construídas por náufragos fracassados que se proliferaram e se misturaram aos SERES, dando vida a existência sem valor.

Coitados!

Dificilmente sentirão toda dor de um amor real acabado ou nem começado, as frustrações intensas e enlouquecedoras das preocupações com o outro que lhe seja caro e, com isso, também não sentirão amores intensos, eternizados pelo momento do suspiro de prazer do ser amado.

Por tudo isso e tanto nada, me acho, redescubro, penso, redefino vida. Por enquanto, eu SINTO, mesmo sem saber ao certo até quando… E você, sente?

*Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta.

Sobre janelas e olhares

“Quando abro, a cada manhã
a janela do meu quarto
É como se abrisse o mesmo livro
Numa página nova…”

– Mario Quintana –

j

Hoje, o dia nasceu assim… cinza, com um mistério inserido nas horas. Chuviscos finos e constantes, ventos leves e amenos. Pare para perceber como pessoas brigam menos em dias assim. Os humanos parecem ficar dois tons mais calmos. Grande parte, quando pode, ausenta-se das ruas e, se não podem, circulam menos hostis. São mais belos esses dias por aqui.

Ultimamente acordo antes do sol e posso me dar ao luxo de, munida da minha xícara de café, dar boas-vindas ao dia. Perto do local onde preparo cuidadosamente meu líquido sagrado, há uma janela grande, cuja vista dança encantada pela diversidade. Espalha-se pelo horizonte um infinito de casas residenciais coloridas, entre morros verdejantes e, eventualmente, ruas de terra batida. Nas primeiras horas do dia, habito um local que me remete aos contos de Machado [o de Assis], tamanha a simplicidade que meus sentidos registram. Aqui, ainda há moços que entregam pães em bicicletas e nos avisam que o dia começou, com o toque de suas buzinas que alardeiam todo tipo de guloseima, para alimentar desde trabalhadores corridos a matronas prendadas e cuidadosas da nutrição familiar.

Domingo, descobri na casa vizinha um cavalo. Era preto, de pelo lustroso, todo imponente. Lindo! E eu, que desde menina nutro um amor quase reverencial por esses animais possantes, fiquei completamente embevecida. Degustei todo meu café apreciando aquela cena bucólica: o grande cavalo negro imóvel embaixo da chuva. O cheiro? Terra molhada… Comentei que ele estava imóvel? Pois é, por longo tempo, assim me pareceu, até que ele levantou a cabeça em direção à minha janela, cinco andares acima, e tocou a minha alma. Ficamos os dois ali, no silêncio do início da manhã, enquanto o resto da cidade ainda dormia, a fitarmo-nos e espreitar a presença curiosa um do outro. Foi mágico.

Desde então, meu olhar, que vem passando por mudanças constantes de ritmo, pousa naquele quintal à procura do garanhão. Nunca mais o vi, nossas almas conversaram naquele domingo e, tenho certeza, marcaram encontro para outra ocasião. A minha [alma], ficou com essa imagem tatuada e uma sensação inesquecível de aprendizado. O garanhão ficou de me ensinar algo sobre serenidade e imponência, em meio a tempestades.

Entre exageros e vazios

“O vazio só existe para os desapegados,
para os que suportam e celebram o silêncio
que possibilita-nos ouvir os sussurros da intuição
e não os gritos infantis dos desejos imediatos.”

– Marla Queiroz –

Acordei vestida de saudade. Esse sentimento que, entre tantos outros, rotula faltas… Saudade é a palavra bonita (?) que disfarça um certo vazio que nos ronda. Tanto mais penso sobre o assunto, mais percebo o quanto somos feitos disso: falta. E, quanto mais sentimos sua presença, mais nos debatemos interiormente, numa espécie de desconforto infantil crescente. Começamos a olhar para os lados, à procura de algo que não fazemos ideia do que seja, buscando no externo algo que supra.

Lá vamos nós… nos entupir de trabalhos, prazos, festas, pessoas, sexo, bebidas, drogas, saídas, viagens… Fugas, inconscientes (ou não), de nós mesmos. Assim como os dias que se seguem, a falta alavanca em nós todo tipo de ansiedade. Tornamo-nos inicialmente mais elétricos, necessitados de preenchimentos… damos vazão a pensamentos diversos e, não raro, vamos ali… arrumar uma “sarna” para nos coçar e – quem sabe (?) – nos livrar dessa sensação incômoda de falta.

Como crianças à procura de uma nova distração, saímos a campo para desviar o pensamento do ponto real e quase imutável da tal falta. Buscamos na euforia uma fuga bastante conveniente e semi-eficaz. Digo semi-eficaz por saber que a euforia passa…e a falta inicial costuma ficar bem mais latente depois disso. Gostamos de nos pensar diferentes e até somos, culturalmente, mas em certas sentimentalidades tornamo-nos mais previsíveis do que gostaríamos de admitir. Admitir dói, incomoda mais. Sigamos na previsibilidade e encontremos um “culpado” externo para esse incômodo tão nosso quanto desconhecido no âmbito consciente.

Casados arrumam flertes, solteiros embebedam-se de novas pessoas e possíveis estórias tão legais quanto efêmeras, outros tantos, independente de status, seguem… entupindo-se de qualquer coisa que dê alivio. É humano, natural. Os mais quietos, talvez, derivem à beira de abismos depressivos. Possibilidades. Vamos brincando na nossa montanha-russa interna, onde os altos e baixos se alternam, por vezes vagarosos e em outras numa rapidez assustadora. Vamos percebendo nossos entornos… a rapidez com que somos capazes de dar lugar ao outro que nos habita, seja por conveniência ou por necessidade. Mudamos.

A falta, essa senhora sorrateira que ronda a todos nós vez em quando, é propulsora de autoconhecimento, de mudanças em nossas entranhas inconscientes. A falta, meu amigo, é para quem pensa. Para aquele que anseia estar vivo e acompanhar os dias, no seu melhor brilho. É a possibilidade de se olhar sem. Para viver a falta que nos habita e aprender com ela, é possível silenciar entornos, dar tempos ao corpo, ouvir-se… Vale lembrar que espaços vazios estão prontos para preenchimentos. Não há vazio que não aguarde algo bom para preenchê-lo… naturalmente.

Toda essa conversa, meu bom leitor, se deu porque hoje, acordei saudade…

Quando você foi inédito pela última vez?

Você oferece um passado usado sob o disfarce de futuro.
Alcança aquilo que foi ensaiado com o antecessor.
Não se dá o luxo de disfarçar, o trabalho de maquiar,
colocar uma manta no mobiliário da memória.

– Fabrício Carpinejar –

…então novamente você está enamorado, de bem com o mundo, sentindo-se iluminado e um ser humano bacana, sorridente, cheio de gentilezas e boa vontade com a vida e, por incrível que possa parecer, com seus semelhantes desconhecidos. É momento de tirar do seu baú pessoal toda sorte de galanteios, amenidades, “queridices” em geral e ser benevolente [sejamos sinceros, você nem lembrava mais que era capaz de ser tão fofo com quem nunca te viu MAIS MAGRO] com absolutamente todos os que passam pelo seu caminho.Nesses tempos azuis, não há chefe irritante que consiga te tirar do sério, amigo reclamante fica “de cara” porque, a cada reclamação, você saca a sua enciclopédia de autoajuda, fazendo-o perceber como a vida é sábia e que basta uma pitada de percepção para que o ruim torne-se uma ponte para o sucesso.

É, meu amigo, a vida não tá fácil pra ninguém. Na era da alegria e das pessoas resilientes, super adaptadas aos danos catastróficos do dia a dia, ou você faz o jogo do contente, ou vai ser solenemente ignorado pelo povo.  Existe a máxima de que, quando te perguntam como você está, a única resposta permitida é que tudo está ótimo e cada dia melhor. Se for diferente disso, seu interlocutor terá mil compromissos urgentes para tratar naquele momento e, infelizmente, não poderá te dar atenção…mas ligue um dia desses para conversar [não se ofenda caso ele esteja muito ocupado para atender sua ligação]… É aí que você sente uma necessidade abismal de renovação. Veste aquela roupa que super te valoriza, dá uma caprichada no visual capilar, põe a sua versão particular da máscara do Coringa e sai por aí repetindo no piloto automático tudo aquilo que parece bacana para o outro ouvir. Lê sobre coisas que nada têm a ver com a sua realidade apenas para ter um cardápio de assuntos que te façam parecer mais inteligente e antenado. Nada muito específico, nada profundo [profundidades são confundidas com “papo-cabeça” e isso é coisa de chatos]. Segue o baile, fingindo adorar o ritmo da moda.

Com sorte, talvez você acorde um dia perguntando-se do que realmente gosta, qual afirmação realmente te representa, quando foi que você fez aquela declaração apaixonada, inédita, exclusiva, de coração…pelo sentimento real e não apenas para colecionar conquista. Talvez, você se incomode com sua falta de identidade particular, talvez [quem sabe?] até sinta falta dos seus incômodos questionamentos, de vestir aquela blusa laranja que você deixou de lado porque alguns disseram que era cafona. Nesse momento idílico, em que você se permite existir fora da caixinha, esquecendo-se dos rótulos pesados e cansativos que os humanóides repetem, é possível até que você se permita viver.

Boa sorte, ao acordar.

A esperança do amor

“Quando o amor para de um dos lados, o relógio intelectual morre. Não se vive desprovido de gentileza. A gentileza é o amor em movimento.”

– Fabrício Carpinejar –

Essa foi uma semana privilegiada por conversas instrutivas. Fabrício, Cortella, Nietzsche, Martha, Mia e alguns outros nomes de acolhimento encontraram-se comigo e algumas alunas para um bate-papo interessante acerca de tolerância – que nosso querido Cortella prefere chamar de “acolhimento” -, intolerância e outros temas tão em voga, nesses dias de discussões políticas e ideologias acirradas.

Para começo de conversa, não tratamos de papos políticos, nem nada do gênero. Tratamos do olhar e da forma como o exercitamos. Para você que chegou em minhas letras agora, vou contar que tenho essa mania-necessidade de exercitar a forma de olhar, a vida, os outros, os bichos e tudo que chega de encontro às minhas retinas ou ouvidos. Sim, o que ouço transformo em pensamento, e os meus são uma grande tela à espera das cores para pintar os quadros internos. Mas, cadê a esperança deste texto? Respire fundo…inspire devagar e deixe o texto entrar em você. Acolha os desenhos destas letras e forme seu próprio quadro mental. É aqui que a esperança e o amor se encontram. Nesse seu pequeno exercício.

Confesso que tenho certo déficit de esperança quando os assuntos são os mais gritantes para nossa sociedade. Ao longo da vida não consegui alimentar ambições e não sou “carnívora”. Nego-me a debater com o coleguinha de ideias inflexíveis, seja lá qual for o tema. Amo quando as opiniões do outro encontram abrigo entre minhas convicções. Acho o máximo! Mas é raro…Geralmente me assusto com a voracidade alheia em defender com dentes, unhas e objetos afiados suas ideias e isso, meu caro leitor, é de dar uma preguiça de ouvido que nem lhe conto!

Ops, divaguei…perdão. Voltemos à esperança. Depois de muitas conversas ao pé das letras, com os amigos citados, e alguma finalização de arte com as alunas amigas, demos as mãos e concordamos que, sem esperança, não há vida. Sem esperança, a generosidade definha, tornamo-nos avarentos e mesquinhos dentro de nossa ideia inflexível. Somente a NOSSA é a real e aceitável, tudo em volta torna-se o “inimigo”. Quando nos falta esperança, entramos em estado de sítio, ficamos incapacitados de entender um amigo, por pura ambição. Objetivamos ter uma razão de ditadura, uma poupança alimentada por nossa mesquinharia emocional.

Esperança, meus lindos leitores, é acreditar na calma, na certeza dos dias que nascerão e na tranquilidade de que não é preciso acertar sempre. Esperança é plantar ideias, sorrisos, afetividade, mesmo em solo arenoso. É quase como crer em milagres. Nos milagres diários, cultivados na psique e no coração do coleguinha super sábio de todas as coisas. É entender que não é necessário fazer do conhecimento um fator limitante, mas, ao contrário disso, procurar a sapiência nas palavras do outro, procurar na diferença a brecha para um novo entendimento, algo que some ao nosso acervo pessoal.

Acredite [ou não], até os mais simplórios e menos estudados contêm um saber diferente do seu e que, se você permitir, pode ser bastante útil e interessante. Creio que seja isso que nosso filósofo Cortella chame de acolhimento. Abrir brechas no seu saber para incorporar um pouco da ideia do outro. Carpinejar me contou que esperança é educação e, embora nunca tivesse olhado dessa forma, concordei e acolhi esse conceito. Quando a esperança acaba, resta a raiva e o alimento passa a ser o ressentimento. Quase tudo se torna arma e farpa pessoal. A esperança é perceber que haverá outro dia, as ideias vão mudar, porque esse é o ritmo da vida: movimento, mudança. Nós não respiramos duas vezes o mesmo ar.

A esperança torna a vida melhor, abre-nos as portas da mente, abre a liberdade de cometer o mesmo erro, porque entendemos que a vontade de seguir em frente é maior que os julgamentos e sentenças alheias. Experimenta a esperança quem crê no perdão de si mesmo.

Convido você ao exercício proposto. Crer no ritmo da oxigenação, na vida no seu ritmo, no respeito ao seu tempo. Quero ver o brilho nos olhos renovados pelo novo. Convido à teimosia de existir acolhendo sua própria alegria, deixando de lado quem não entende de sorriso. Seguir acreditando em si, entendendo que o erro de antes pode ter sido a janela se abrindo para o acerto do agora. Acreditar que amar é acolher, é continuar sendo até acertar a companhia.

Além do que se foi

“A vida não é uma pergunta a ser respondida,
é um mistério a ser vivido.”

– Buda –

Era uma manhã de quinta-feira, sol a pino, barulho nas ruas logo cedo, a correria matutina de todos os dias. Rotina. O telefone tocou insistentemente ao meu lado e, pelo horário, estranhei. Atendi. A voz do outro lado me contava a notícia: uma amiga querida havia “feito a passagem”. Emudeci, completamente incrédula. Dois dias antes, trocava com ela percepções da vida atual, nossos receios, previsões, posturas. Nós nos conhecíamos desde meninas e havíamos nos perdido pelas circunstâncias naturais da vida, que une e separa pessoas a seu bel prazer. Graças às redes sociais, reencontramo-nos e estabelecemos natural sinergia. Agora, a notícia tão inesperada quanto absurda: MORTE. Inacreditável.

Calei-me ante o acontecimento. O silêncio é a única coisa em mim capaz de vivenciar perdas. Minha forma conhecida de respeito. Não consigo chorar, embora pense nisso, mas normalmente choro pelo que transborda e não pelo que falta. Na falta, viro oração silenciosa, devoto-lhe pensamentos, lembranças… Construo um altar espiritual, permeado de memórias, aprendizados, trocas.

Procuro alento em outras falas, lágrimas alheias que não me comovem, mas aumentam meu vazio. Começo a contar tempos, refazer caminhos. Não penso em fugir da morte, seja a minha ou dos que rodeiam… Torço apenas para partir antes, de modo a não sentir tanta saudade e, quem sabe, ter a honra de recepcioná-los com sorrisos largos “do outro lado”. Depois de perder algumas pessoas muito amadas para a própria vida, não é a perda pela morte que me deixará com medo.

Sim, sinto dores, pelo corpo todo… são meus órgãos se realocando, tentando preencher o espaço que fica. Perder dói. Pensar nisso pode doer ou não, dependendo da crença que tenhamos. Deste lado, acredito em adeus dado em vida: esse sim é forte, fatal. Já a morte é, para mim, um “até breve”… daqui a pouco a gente se encontra, numa outra esquina. É a vida… preciso morrer para adubar árvores que ainda não plantei, para [quem sabe?] ser lembrada por quem, em vida, me esquecia, com alguma fagulha de carinho, de talvez…

Morte, de verdade, acredito que seja essa, do total esquecimento. Quem vive na lembrança daqueles com os quais conviveu não morre, apenas se ausenta temporariamente… faz viagem para lugar inédito, cheio de mistério, onde não serão permitidas fotos para póstuma postagem nas redes.

Estilhaços

Coisas que parecem
pequenas e banais,
machucam a ponto
de me fazer mancar.

– Ricardo Cordeiro –

Sabe, hoje, quando te olhei no espelho, percebi teus pedaços. Eram tantos e te deformavam a aparência [antes tão segura], de um jeito tão seco e real, que me assustei. Você, que sempre me pareceu tão exuberante, tão cheia de personalidade e certeza, mesmo dentro do caos, aparentemente tão intensa, tão inteira…

E eu te admirava tanto por trazer sempre a cabeça erguida, mesmo quando parecia tão errada aos olhos externos, que só te viam superfície. Era assim que eu te enxergava: quase um navio de guerra, ricamente ornado e paramentado com o que havia de melhor, resistente às tempestades, às batalhas, aos inimigos e a todo tipo de intempérie. Sim, eu já havia te visto derrubada, já havia vislumbrado tua casca arranhada, teu interior alagado e a estampa esfarrapada e, ainda assim, te percebia inteira a cada vez em que te olhava, sempre com a argumentação emotiva e apaixonada dos que carregam consigo os desamores da vida e, talvez por isso, aprenderam a se manter de pé.

Então, naquele momento, eu te via pela primeira vez desde que te conheci. Fragmento de uma alma estilhaçada, cortada em tantos pedaços disformes, que nem me atrevi a contar. Apesar do susto, não consegui parar de te olhar. Era uma nova você, tão frágil, tão precisada de abrigo, de abraço, de sentido…

Fiquei ali parada, tentando entender quem era aquela pessoa que eu pensei conhecer tanto e, no entanto, jamais havia percebido de fato. Olhos grandes, marejados. Lembrei que te dizia que eram olhos de fim de tarde, com aquele tom castanho amarelado que só os fins de dias trazem. Agora, carregados de confusão e de uma dor tão profunda, que rotulá-la de tristeza quase seria uma alegria. A primeira vez em que te vi despida de alegoria, de riso, de possibilidade. Cada pedaço de imagem sufocando um pedido urgente de socorro, que havia se perdido no silêncio do tempo. Engoli palavra, por falta de coragem. Fui tomada por um medo incrível de te despedaçar ainda mais. Desviei os olhos e me obriguei a dar outro rumo ao pensamento.

Quem sabe, se eu fizesse de conta que não vi o teu quebra-cabeças desmontado, ainda poderia te dar a mão, te oferecer amparo e, talvez, até te ajudar a montá-lo?

Inventando …

“Eu sempre gostei de inventar histórias…”

– Fábio Yabu –

alma de poeta

Dia desses, eu resolvi deixar a vaidade tomar conta do meu ser e se aventurar por aí. Deve ter sido mais ou menos nesse tempo que encasquetei com a ideia de escrever um livro meu. Nada muito rebuscado ou cheio de mistério e ficção, apenas um livro com crônicas acerca do cotidiano. No início, parecia sonho, relativamente simples, já que costumava escrever para blogs, trabalhos e até colunas de jornal, como Ghost Writer, tudo bonitinho, enquanto estava no sonho. Daí me meti nessa história de realizar. Danou-se. No melhor contexto Maísa, vi meu mundo cair. Minha auto crítica me pirou, a necessidade do “olhar alheio e aprovador” do outro, me fez voltar aos picos de ansiedade enlouquecedores que já havia esquecido no passado. Essa, foi apenas mais uma das minhas muitas invenções…

Num rompante de realidade nua e crua, percebi que estava embarcando numa dinâmica muito comum dos novos tempos: a idealização. Quando me dei conta, estava olhando para o mundo e para as pessoas que estavam virtualmente nele, pelos olhos glamourosos da invenção [vulgo, surto- pessoal- psicótico], embarquei na doideira de que algumas pessoas realmente eram fofas [daquela forma imaginária-genuína] e não apenas pessoas comuns e difíceis como todo reles mortal. Caí da escada da vida [literalmente] e, ao levantar fui obrigada a perceber uma verdade simples: estava completamente só.

No momento pós queda, para alívio imediato de primeiro grau, me dei conta de que não havia novidade na constatação do fato e segui em frente. Depois que uma realidade dolorida se faz ver, parece que várias outras ficam enciumadas e seguem o mesmo caminho, foi aí que percebi outra simplicidade: eu amo inventar estórias, mas parece que, inconscientemente também invento pessoas. Pego aquele coleguinha semi conhecido e vou transformando-o numa espécie de buda intelectual ou numa musa inspiradora…é…parecia que eu estava viajando na maionese [deliciosa] do mundo bacana.

Tratei de procurar uma reabilitação para o meu mal súbito que durou uns anos…ainda não estou curada, sigo imaginando pessoas melhores do que realmente são e, pra ser sincera…tenho muito medo de me curar. Talvez seja melhor tratar de escrever mais livros e mergulhar de vez na minha imaginação. Afinal, o que é realidade?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tempo Escorrido

“Eu não sei fazer metáforas

porque não compreendo metáforas.

Para mim, tudo é literal.”

– Eliane Brum –

Nua. Pálida em frente ao espelho. Silêncio. Apenas as marcas conversam entre nós. Escorro…meus olhos estão caindo…a pele está perdendo o viço. Desconheço o reflexo naquele espelho. Toco a pele diversas vezes, como quem quer ter certeza que ali na frente, aquela semi desconhecida ainda se move pela minha vontade. Acontece que a incerteza nasce…então…foi nesse rosto que me transformei?

Sorrio. Uma tentativa tímida e medrosa de reaver algo familiar ali. Não acontece. O rosto que sorri de volta tem lábios mais finos, sorriso estreito, dentes amarelados pelo tempo…não encontro o riso largo, imenso a dispensar lábios carnudos pela alegria de exibir um rosto feliz. Perdi…deve ter ficado em alguma foto do passado, há algum tempo atrás quando eu ainda conseguia ser leve. E crédula, claro.

Agora nos encontramos mergulhadas no silêncio mórbido, na perda, no esquecimento, nas dores…na estranheza…uma leve lembrança do rosto de antes, que mesmo se esvaindo em choro conseguia ter beleza, agora o olhar é triste até nos dias bonitos. Entranhou. As fotos viraram um borrão que só antecipa futuro. Envelheci muito antes do que imaginava. E não é só aqui no reflexo do espelho sem maquiagem…envelheci nas entranhas, que vão dando sinais de apodrecimento a cada mínimo exagero. Aprendi tarde a fazer escolhas que me protegem de mim, desse desamor, do mau humor do mundo, do mau olhado, crítico, sussurrado, enfadonho…Faz pouco tempo que fechei a porta para as vozes que só atormentavam e agora…Novamente cai no erro, no exagero das ansiedades, das expectativas, me atrevi a esperar respostas que não vieram…Envelheci cinco anos em uma semana…Angústias…São elas que aparecem no espelho quando olho. Estou vestida, numa tentativa insana de esconder meu corpo. Não adianta…minha alma tem olhos de raio x e, pelo aperto dos botões é gritante o inchaço…a gordura tentando aplacar ânsias, proteger do mundo, uma rota de fuga denunciada…

Não me preparei para o futuro. Jamais acreditei que ele chegaria. Agora estamos aqui, nos medimos frente a frente e o tempo ri. Ele sempre ganha a guerra, escorre a vida, acontece todo dia e desta vez, ludibria minha quietude. Escorremos…

Entretantos

erros e acertos

Tudo que faço hoje,
não é diferente do que antes, eu fazia…
Só a mim mesma não conhecia,
Acumulava culpas, onde hoje encontro diversão,
dava chicotadas onde hoje, encontro meu perdão.
A vida, passou de montanha russa à roda gigante.
Fiz as pazes com meu parque particular.
Encontro riso, onde antes, enxergava ofensas.
Alavanco oportunidades, onde antes só enxergava
dificuldades limitantes.
Sou hoje, bem mais do que a foto congelada
de uma história em ascensão.
Sou a queda que virou motivação.
Porta aberta, janela que ilumina.
Me entreguei ao medo
e fiz dele redenção.
– Sigo –

Gritos silenciosos

“Passo tempos,

passo silêncios…

Mudos sem forma,

passam por mim.”

– Fernando Pessoa –

armadura

Existo dentro de silêncios,
onde por vezes,
habitam apenas minhas vozes preferidas,
generosas e agregadoras.

Sim…eu grito.
Eventualmente aumento tons…
mas, berro mesmo,
dentro dos silêncios.

Onde as tempestades caem,
trovões ensurdecem a alma
por segundos, horas ou semanas.

Onde a calmaria da observação se faz presente.
Trago em mim, esse segredo:
Meus gritos ocorrem em silêncio
e, não raro
tenho medo.

Viver feliz ou apaixonado?

“Tenho tudo para ser feliz

E isso está me enlouquecendo…”

– Paulo Coelho, em “Adultério” –

Adultério - PC

…Daí um dia como outro qualquer, onde você está imerso nos seus projetos, para esconder -se de si mesmo e sufocar o que corre internamente. De repente, alguém te tira da estrada planejada, com um pedido tão inesperado quanto interessante e você sai da sua rotina, feliz.

O outro chega, com sua cor, seu peso, sua intensidade gritante e te tira, sem querer e sem nenhuma consciência disso, do seu casulo pseudo protegido. Entre um olhar e um suspiro, você lembra, a fórceps que também é assim: exagerada e contagiante, mas por medo ou comodismo, vinha tentando se redesenhar…conter.

A palavra me soa como um tapa na cara, daqueles que você fica na dúvida se te doeu ou se você gostou. Acordo!

A vida, essa menina travessa, utiliza seus meios controversos para mudar nossos rumos. Por vezes, uma pessoa, por outras, um livro, filme, música, foto, acasos…

Coincidentemente (?) ao retomar a rotina de clausura dos projetos, nos momentos de folga, volto meus olhos para um livro que havia esquecido: “Adultério”.
Não creio em coincidências ou acasos… A protagonista do livro, como eu, vivia sua rotina na santa calmaria dos dias e se obrigava a deixar-se engolir pela ilusão do dia a dia “perfeito”. Até que um dia…o “outro” conta que não tem o menor compromisso com a felicidade, porque (e tão somente…) resolveu viver apaixonado.
Quando termino de ler esse parágrafo, o tapa na cara do outro dia, ressurge com força e me pergunto incomodada: “Quando foi que fiquei com medo de existir apaixonada?”
Esse foi apenas o pontapé inicial da minha jornada, rumo ao “lado B” que ainda desconheço, mas que me vez perceber, pela primeira vez em muito, muito tempo, troquei as dores físicas pela curiosidade de olhar o mundo lá fora…

“- Não tenho o menor interesse em ser feliz. Prefiro viver apaixonado, o que é um perigo, pois nunca sabemos o que vamos encontrar pela frente.”

E você, o que pensa sobre o assunto? Se é que ainda se pergunta sobre isso…